quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Resenha de WALDEN OU A VIDA NOS BOSQUES, de Henry David Thoreau



UM HOMEM EM ESTADO DE ALERTA

Andityas Soares de Moura Costa Matos

“O mundo eu não o amei, nem ele a mim;
não bajulei seu ar vicioso, nem dobrei
aos seus idólatras o joelho do sim”.
Byron, Childe Harold, III, 113 .
(BYRON, George Gordon; KEATS, John. Byron e Keats: entreversos. Trad. Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2009, p. 21).

No final de 2008 um filme passou desapercebido pelas massas, tendo recebido o frio desdém de Hollywood, o que já nos faz pensar que se trata, no mínimo, de uma obra honesta. Baseado em fatos reais recolhidos por Jon Krakauer, o diretor Sean Penn nos conta em Into the wild a história de Christopher McCandless, jovem norte-americano promissor que resolve largar tudo, abandonar a família, os estudos e o futuro profissional assegurado para se embrenhar em uma aventura de autoconhecimento cuja meta concreta era o Alasca, a natureza selvagem. Em sua jornada Christopher conhece várias pessoas que o auxiliam, mas seus principais companheiros são sempre os livros. É neles que o quase-estudante de Direito encontra inspiração e coragem para se tornar um outsider e renegar a falsa vida que nos é imposta. Na bagagem de Christopher conseguimos identificar alguns nomes, alguns títulos: Doutor Jivago, Tolstói e o bom e velho Thoreau. Em inúmeras passagens do filme o personagem principal cita trechos de Walden e chega a confundir a sua personalidade com a de Thoreau, apresentando-nos uma versão contemporânea e extremada deste grande pensador, que acaba de ganhar em Portugal uma nova edição de sua obra maior, já que não a mais conhecida, que é certamente o breve e cintilante ensaio A desobediência civil.
Famosa por desenvolver um dos projetos editoriais mais consequentes e criativos entre os poucos que existem no mundo leitor lusófono, a Antígona Editores Refractários comemora seus trinta anos na contramão do mercado lançando a segunda edição de Walden ou a vida nos bosques de Henry David Thoreau (1817-1862), um dos mais importantes nomes do movimento Transcendentalista norte-americano, discípulo de Emerson, filósofo, educador, naturalista, ativista político e escritor. Trata-se de uma belíssima edição que conta com a tradução exata e elegante da brasileira Astrid Cabral. Ainda que não seja muito fácil encontrar o livro no Brasil, vale a pena tentar obtê-lo em sites de compra como o da Livraria Cultura de São Paulo. Editado pela primeira vez em 1854 nos Estados Unidos da América, Walden se tornou um clássico entre os malditos, tendo inspirado a geração hippie, os escritores beatniks e todos os rebeldes com causa de uma ponta a outra do globo. A proposta de Thoreau é de uma singeleza a toda prova. Tendo se mudado para o bosque que circunda o lago Walden, ele construiu com as próprias mãos uma cabana e viveu em semi-isolamento de 1845 a 1847, até decidir voluntariamente retornar à civilização. Com exceção de algumas visitas pontuais, de caminhadas necessárias à cidade para comprar ferramentas e da prisão que teve de amargar em 1846 por se recusar a pagar impostos federais que seriam utilizados na guerra contra o México – será esta experiência o embrião de A desobediência civil –, Thoreau permaneceu cerca de dois anos em contato profundo com a natureza, reequilibrando os ritmos vitais do corpo e da mente e preparando a escrita de Walden. O autor explica suas razões em um trecho que se tornou justamente célebre ao ser citado em outro belo filme, Sociedade dos poetas mortos: “Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido. Não desejava viver o que não era vida, sendo a vida tão maravilhosa, nem desejava praticar a resignação, a menos que fosse de todo necessária. Queria viver em profundidade e sugar toda a medula da vida, viver tão vigorosa e espartanamente a ponto de pôr em debandada tudo o que não fosse vida, deixando o espaço limpo e raso” (p. 108).
Walden ou a vida nos bosques não tem propriamente um enredo, sendo antes o resultado das observações pessoais e das meditações de Thoreau. Enfrentar as suas quase 400 páginas às vezes constitui uma tarefa árdua, pois há capítulos inteiros em que Thoreau se dedica a explicar a dinâmica de congelamento do rio Walden, a descrever os inúmeros pássaros que o visitam pela manhã e a nos apresentar a sua contabilidade pessoal, impecável como a de todo bom puritano, título que Thoreau lutava para não merecer. Mas as passagens algo tediosas são largamente compensadas pelas intensas digressões filosóficas e artísticas de Thoreau, pelo seu pensamento comprometido com a causa da verdade e da liberdade, pelo seu estilo fulgurante, crítico ao extremo, iconoclasta e ainda assim delicioso, recordando-nos a verve mordaz de um seu conterrâneo do início do século XX, o jornalista Henry Louis Mencken, famoso pelas diabruras verbais. A linguagem, para Thoreau, é uma forma de comunicar a verdade, desde que não esteja infectada pelos vícios do politicamente correto, como ocorre nos nossos dias: “Desejo falar sem papas na língua seja onde for; como um homem em estado de alerta a outros homens em estado de alerta” (p. 352).
Mas por que um livro escrito há mais de 150 anos nos interessaria hoje? A resposta é óbvia quando observarmos nossas vidas vazias que se guiam exclusivamente tendo em vista imperativos econômicos e materiais, quando percebemos que algo nos falta, que a verdade está lá fora e não a conseguimos enxergar. Walden se coloca então como um ponto de fuga capaz de expor as nossas fraquezas e nos obrigar a ver a realidade tal como ela é: infinita, maravilhosa e vedada a todos aqueles que pervertem a sua própria essência. A estes só resta o sereno desespero: “Os homens, em sua maioria, levam vidas de sereno desespero. Aquilo a que se chama resignação é desespero crónico” (p. 22). Thoreau não contemporiza, não aceita subornos e não poupa ninguém, nem mestres e nem deuses. Seu ataque à civilização – personificada em correios, jornais, mobílias e despertadores – é demolidor e inclui a denúncia minuciosa do luxo, da pressa e até mesmo da caridade, essa espécie de falso bálsamo que faz os opressores dormirem melhor e não muda em nada as estruturas de poder. Em um mundo no qual reinasse a justiça não precisaríamos de caridade. A cobiça desenfreada, a política da qualidade total e do cliente-tem-sempre-razão, a gestão eficiente de coisas mundanas e inúteis nos fizeram esquecer que há algo além de lucro e prejuízo: “Por que deveríamos nós correr desesperadamente atrás do sucesso, em empreendimentos desesperados? Se um homem não acerta o passo com os seus companheiros é porque talvez ouça um tambor diferente. Deixai-o marchar conforme a música que ouvir, ainda que lenta e distante” (p. 353).
Segundo Thoreau, o papel da arte é o de despertar-nos para a verdade. Mas se hoje estamos limitados e emburrecidos pelas telenovelas, pelos reality shows e pelo futebol, como resistir ao futuro que se mostra inegavelmente opressor? Apaixonado pelo Oriente e pela Grécia, terras onde nasceu a verdade – terras onde ainda está a verdade –, Thoreau nos alerta para o processo de estupidificação a que somos submetidos diariamente pelos meios de comunicação dominados pelo Estado e pelo poder econômico. A pretexto de oferecer entretenimento, eles minam nossas energias, sabotam qualquer senso crítico e impõem um gordo e macilento comodismo: “As melhores obras de arte do homem exprimem a luta para libertar-se desta condição, mas o que resulta da nossa arte consiste apenas em tornar confortável este estado inferior e fazer-nos esquecer do outro mais elevado” (p. 53). Com isso falseiam-se as percepções e acabamos por entender que a caverna é a única realidade. Omitimo-nos diante das injustiças e dos desvarios do Poder, assim como os contemporâneos de Thoreau, que concordavam com a escravidão ao considerá-la uma instituição social perfeitamente normal. Hoje são outras as servidões, mais alarmantes porque mais sutis e permanentes. Trata-se agora da servidão do espírito.
Thoreau retoma Platão e antecipa Chomsky ao notar que: “Ao mesmo tempo que a realidade é uma fábula, simulações e enganos são considerados como as verdades mais sólidas” (p. 113). Isso porque somos acostumados desde a mais tenra infância a não questionar, a sermos educados, sorridentes e servis, a temermos Pai, Deus e Polícia. Profundamente desmobilizador, o Cristianismo nos ensina que há mistérios e homens-deuses que se deixaram torturar para ganhar o céu em benefício de nossa raça que, absurdo, já nasceu marcada pelo pecado original. Em um ambiente assim a verdade se reserva aos Papas e Carolas, aos Presidentes e Ministros dos Supremos Tribunais, ao Professor Doutor ou ao Líder Sindical, todos com maiúsculas reluzentes e santas, levando-nos a considerar “[...] a verdade como algo remoto, nas imediações do sistema solar, atrás da mais longínqua estrela, anterior a Adão e posterior ao derradeiro homem” (p. 114). Por isso a obra de Thoreau é urgente, por isso é perigosa como tudo que é urgente. Tal e qual seus célebres sucessores – Gandhi, Luther King, Marcuse, Chomsky etc. –, Thoreau se envolve até a medula em um processo radical de desencobrimento do Real mediante o qual somos habilitados a torcer e a retorcer as opiniões dadas e herdadas, como quando afirma que: “Só os derrotados e os desertores vão para as guerras, covardes que fogem e se alistam” (p. 350). As sentenças de Thoreau em Walden – sempre inapeláveis, sempre certeiras – podem até nos parecer ácidas, sendo mesmo insuportáveis para muitos, acostumados que estão a serem números e não homens, mas nelas não se esconde nenhum pessimismo como querem alguns e muito menos idealismos, anarquismos e utopismos. Para além dos rótulos comportados que compõem os índices dos manuais de Filosofia, Thoreau se compromete com um único valor, a exemplo de Christopher McCandless: “Mais que amor, dinheiro e fama, dai-me a verdade” (p. 358). Ainda que Walden contivesse infinitas tolices – e não é este o caso –, tal súplica bastaria para justificar o livro inteiro.

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