quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010


ARTES E LETRAS - PORTO (Portugal)

“A poesia é a forma superior da linguagem”

Considerado uma das vozes mais marcantes da moderna poesia brasileira, Andityas Soares de Moura é poeta, tradutor, ensaísta, professor universitário e mestre em Filosofia do Direito. Publicou os livros "Ofuscações" (edição do autor, 1997), "Lentus in umbra" (edição do autor, 2001; edição bilingue espanhola lançada por Trea, 2002), "Os encantos" (in vento, 2003) e "Fomeforte" (in vento, 2005). O seu ensaio "A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois Garcia" (Universitária, 2004) foi publicado em Portugal. Quatro anos depois, a edium editores acaba de lançar entre nós o poemário "Dibaxu", do Prémio Cervantes Juan Gelman, numa tradução de Andityas, bem como uma antologia da sua poesia intitulada "Algo indecifravelmente veloz". O "das Artes das Letras" aproveitou a passagem do jovem poeta pelo país para falar sobre a sua arte.

Paula Alexandra Almeida (entrevista)



Há um poema seu em que diz: "Nos jardins de Minas / Só se ensina que a palavra/ só não vira equívoco / quando é pouca / e sussurrada". É esse o segredo para um poeta tão jovem ter uma produção literária como a que você tem?
Não sei. Nem sei se a minha produção é grande. Tenho quatro livros dos quais o primeiro eu não considero como tal, não o considero acabado. Tanto assim que nem entrou na antologia agora editada. Portanto, considero que tenho três livros e de poesia, e também prosa, ensaio e livros na minha área profissional, que é o Direito. Mas eu não sei qual é o segredo da poesia. A poesia é a forma superior da linguagem e, como toda a forma superior, tem que ser económica. Talvez esse verso remeta a isso, a essa economia da linguagem, a essa economia da forma. Porque hoje vivemos num mundo no qual somos bombardeados a cada minuto por inúmeros estilos informacionais, e eu acho que é muito difícil viver nesse mundo. A poesia é uma espécie de válvula de escape, uma espécie de outra realidade em que eu posso movimentar-me melhor, com mais prazer, com mais liberdade, e necessariamente isso tem que ser feito de forma singela, simples, e sem os exageros a que estamos acostumados.

Você organiza antologias, é tradutor, crítico literário, ensaísta, advogado, professor universitário. Como é que tudo isto culmina na poesia?
Essa é uma pergunta que me fazem várias vezes e de várias formas. Para mim, todas essas actividades estão ligadas. No nosso mundo existe uma espécie de doença, de febre da especialização. Eu vejo as coisas de outra forma. Eu acho que nos deveríamos aproximar mais do modelo do Renascimento, quando as pessoas eram, simultaneamente, tutores, músicos, historiadores, filósofos, poetas. E eu acredito que todas as áreas do conhecimento estão ligadas e que essa separação que fazemos actualmente, no mundo contemporâneo, é artificial. Tudo pode ser conectado e deve ser conectado. Na poesia, como é uma linguagem superior, uma beleza superior, tenho que procurar conexões em todas as áreas possíveis e imaginárias do conhecimento humano. De modo que tem tudo a ver eu ser professor de Filosofia do Direito e ser também poeta e tradutor. O Direito é uma ciência social, a tradução é uma forma de poesia, e a poesia permeia todos esses campos. Há inter-relações claras entre todas essas áreas, o que me ajuda bastante. Temos que desconsiderar essa febre da especialização. Eu, pelo menos, acho isso extremamente negativo para a poesia e empobrecedor para as artes e para o conhecimento em geral.

Cristina Mello referiu, num dos lançamentos da sua antologia, que a sua poesia não é fácil, resultando de uma elaboração verbal extremamente densa. Concorda?
Em parte concordo. Eu acho que nenhuma poesia é fácil e se ela diz que a minha poesia não é fácil, eu acho que está certa. Nenhuma poesia é fácil. A verdadeira e boa poesia é um mergulho no que há de mais íntimo na língua e no que há de mais íntimo no ser humano. Todo o trabalho de arte exige, aliás, uma certa dificuldade. Não uma dificuldade de compreensão - a arte tem que se apresentar de uma só vez ao indivíduo, tem que chocar de uma só vez. Mas na construção, vejo a arte e a arte poética como um artesanato. E isso é difícil. É difícil construir uma linguagem, encontrar o verso certo, encontrar a medida correcta, encontrar a transcrição correcta no momento correcto. Isso sim, é difícil. Toda a poesia é difícil e globalmente tensa e o que me interessa na poesia é precisamente a tensão. Se ela não consegue transmitir tensão, positiva ou negativa, não importa, não me interessa. Eu tento transcrever, tento colocar isso nos meus poemas, essa tensão. Talvez daí venha a densidade e a dificuldade. Mas toda a poesia é difícil. A poesia não é uma arte fácil, não é uma arte gratuita.

A sua é uma poesia experimental?
Eu tenho obras experimentais. Tenho particularmente um livro, chamado "Os encantos", do qual alguns poemas estão incluídos nesta antologia, que é uma poesia experimental no sentido de procurar as fontes do nosso imaginário, as fontes do nosso lirismo luso - brasileiro, português, a língua portuguesa como um todo -, nos cancioneiros medievais, que são maravilhosos. Para mim são uma fonte de inspiração e de construção poética. Esse livro é de certa forma experimental porque adopta formas diferentes daquelas que a poesia comum adopta. Nós conhecemos praticamente sonetos, sextinas, odes, mas nesse livro eu procuro outras formas além destas, com um discurso voltado para uma sensibilidade muito diferente da nossa. Talvez uma sensibilidade intemporal mas que eu consegui encontrar no século XII ou XIII. Eu gosto de experimentar em poesia. Gosto de, a cada momento, tentar variar, tentar procurar o limite, a cada momento tentar o novo. Não me agrada ser poeta de um poema só, como a maioria dos poetas, mesmo dos grandes poetas. São poetas de um poema só, escrevendo e reescrevendo várias vezes as mesmas ideias e sensações. Eu não. Eu procuro a cada momento diversificar e nisso o experimentalismo é necessário.

Mencionou os poetas trovadores provençais e alguém escreveu que você os trata com a intimidade de vizinhos pobres. É isso que eles representam para si? Um parente pobre da poesia?
Foi Ivo Barroso, um grande amigo e crítico brasileiro, quem escreveu isso, e fê-lo mais num tom de amigável ironia porque verdadeiramente eu não trato os trovadores como vizinhos pobres; trato como colegas. Não só os trovadores provençais mas também os galaico-portugueses, com os quais tenho até mais intimidade por causa da língua. Eu procuro ter uma certa familiaridade com a tradição. O que eu vejo na maioria dos poetas da minha geração, poetas novos na faixa dos 25 e 30 anos, é uma certa repugnância em relação à tradição poética. Uma vontade de criar o novo, uma vontade de inventar a roda, o que eu acho que é perder tempo. Nós temos uma tradição ocidental de poesia de mais de dois mil anos e se eu quiser fazer alguma coisa bela, verdadeira, tenho que assumir essa tradição. Na minha poesia, eu procuro assumir essa tradição através dos trovadores provençais e dos galaico-portugueses. Por isso dialogo com eles e trato-os como vizinhos. Não como vizinhos pobres, mas como vizinhos extremamente interessantes que estão a todo o momento na minha sala de estar, a beber um bom vinho e ajudando-me a encontrar algum verso interessante.

Por que é que é para si tão importante traduzir outros poetas, nomeadamente de língua espanhola? Acha assim tão necessária a tradução entre o espanhol, e o galego, e o português?
Sim. Eu acho a tradução um momento privilegiado da poesia. A tradição já foi vista como uma simples transcrição de uma linguagem para a outra. Mas para mim é uma forma de poesia.

É uma forma de reescrever um poema?
É uma forma de recolocar um poema que está numa certa tradição noutra tradição. Ao traduzir o [Juan] Gelman, por exemplo, eu retiro esse bloco poético que é o "dibaxu" da tradição argentina, na qual foi escrita, e recoloco na tradição da língua portuguesa. Eu acho a tradução um acto fundamental. E partilho a opinião de Walter Benjamim, que dizia: cada tradução que é feita, a cada momento que é feita uma tradução, aproximamo-nos mais daquele momento pré-babel de uma única língua. Cada tradutor, por mais simples que seja a tradução, ajuda a procurar essa unidade total das línguas e do conhecimento. É uma visão mística. Eu vejo a tradução, sim, como uma forma de poesia. E, como já referi, gosto de experimentar várias formas e não poderia deixar de experimentá-la. O Gelman afirma que é impossível traduzir e eu fiz dessa afirmação o meu mote. Traduzir é impossível. O que se pode fazer é deixar intacta aquela beleza em francês, ou em inglês, ou em castelhano, e, com base nela, criar uma outra beleza em português. Traduzir não é descodificar. Traduzir é criar, é um acto de criação, não é um acto de matemático, reducionista. É um acto de criação e é poesia e por isso é que eu gosto.

Portanto, cada acto de tradução é no fundo a sua visão daquela poesia, a forma como você viu, como você leu, como você viveu aquela poesia?
Exactamente. E por isso é que eu só traduzo poetas de que gosto. Claro que existe a tradução profissional, em que você é pago para isso. Mas para mim a tradução é um acto gratuito, um acto de empatia com outro poeta. Eu gostaria de ter escrito esse livro do Juan Gelman, ou a poesia da Rosalia de Castro que já traduzi, ou poetas franceses do Renascimento que também já traduzi. São poemas que eu escreveria e aos quais eu gostaria que as pessoas que falam e lêem português tivessem acesso. É um acto ao mesmo tempo de entrega e de assimilação. Com a tradução eu assimilo a poética dos outros e faço dela minha também.

Aproveitando uma pergunta sua a Juan Gelman, sobre o facto de falar uma língua que não é totalmente dele e de ser visto pelos seus "verdadeiros donos" como falante de segunda categoria, como é a sua relação com o português?
O Gelman ficou furioso com isso. É um absurdo que depois de 500 anos alguém tenha a noção de que a língua é um património nacional e não um património humano. Depois de 500 anos, o castelhano é muito mais da América Latina do que dos espanhóis. Eu não diria o mesmo do português. Não vejo o português com essa divisão entre português do Brasil e português de Portugal. Eu entendo que a língua é uma herança acima de qualquer conotação política, económica ou sociológica. Não vejo os brasileiros, ou qualquer outro povo que fale o português, como falantes de segunda categoria. Vejo-os como parte de um todo. O português é uma língua com várias conotações. Há várias línguas portuguesas que querem conviver e isso é muito rico para a poesia e para a arte. Eu não entendo isso como uma separação mas sim como uma junção. Não há que se usar a expressão falantes de primeira ou segunda categoria, mas sim bons e maus poetas. E bons e maus poetas existem tanto em Portugal como no Brasil. Mais maus do que bons em ambos. Para mim a língua portuguesa serve para unir e não para separar. Infelizmente não é o que pensa a maioria das editoras, por exemplo. Visitei várias livrarias no Porto e não há praticamente livros brasileiros, a não ser um ou dois dos mais famosos - Drummond, Manuel Bandeira… contemporâneos não existem. Da mesma forma, no Brasil só se encontram os clássicos e um ou outro poeta mais conhecido como Eugénio ou Sophia, que já ultrapassaram as fronteiras de Portugal. Não há diálogo entre a poesia contemporânea portuguesa e a poesia contemporânea brasileira. E eu acho isso uma pena.
Mas nesse caso específico considera o português uma barreira?
Não. A barreira que há é mental. Não é espiritual, não é cultural. A língua é a mesma e os espíritos do brasileiro e do português são muito semelhantes. A barreira é económica e política. É uma falta de vontade dos dois governos de concretizar esse intercâmbio. Em Buenos Aires encontram-se livros de Espanha tranquilamente. No Brasil para conseguir um livro português tem que ser importado, a um preço bastante elevado, o que gera uma falta de diálogo. Se pedir a um bom poeta brasileiro para citar cinco poetas portugueses contemporâneos, ele vai demorar e talvez não consiga citar os cinco. Isso é um absurdo.

Qual é a sua relação com a poesia portuguesa?
É uma relação absolutamente apaixonada. Eu adoro a poesia portuguesa, toda a poesia, desde os trovadores até os dias de hoje. Acho-a uma poesia incisiva, muitas vezes irónica, uma poesia inteligente, uma poesia que não se perdeu, ao contrário da poesia brasileira, que tem vindo a perder-se. A partir de um certo momento, a poesia brasileira sofreu um certo esvaziamento, em parte devido ao experimentalismo puro de que passou a sofrer. E até hoje não reencontrou o caminho. Isso não se vê na poesia portuguesa. Apesar de existir o experimentalismo, a poesia portuguesa tem uma linha de desenvolvimento muito clara e muito nítida. E apesar de os poetas serem vários, cada um com a sua história pessoal e as suas preocupações específicas, a poesia portuguesa não sofreu nenhum corte, como aconteceu, e acontece ainda hoje, com a poesia brasileira. A poesia portuguesa tem um caminho e ainda é lida pelo homem comum. No Brasil só os poetas lêem os poetas. Em Portugal não. Os não-poetas lêem os seus poetas e isso é fundamental. A poesia não pode estar guardada dentro do armário, tem que circular, ser polémica, gerar discussões. Mas, de volta à pergunta inicial, a minha relação com a poesia portuguesa é apaixonada. E do que eu mais gosto é dessa leve ironia, desse lirismo muito saudoso, muito melancólico. Como Portugal, mesmo.

Quais os poetas portugueses que mais admira? Algum o inspirou?
É difícil. Para começar, obviamente, os trovadores galaico-portugueses. Esses talvez sejam os que mais me influenciaram. Os óbvios, Camões, Pessoa, Sá Carneiro, são verdadeiros papas da poesia. Contemporaneamente, gosto muito de Eugénio. É um poeta requintado, um poeta absolutamente consciente do seu verbo, da força da sua expressão, um poeta que conseguiu traduzir bem o espírito português e algo mais, um espírito universal, nos seus versos. Al Berto também me fala bem de perto, O'Neill, Sophia…

E algum desses o inspirou particularmente?
Eugénio de Andrade sim, com certeza. Ele mesmo dizia que hoje em dia todo o poeta quer imitar Eugénio de Andrade. Hoje em dia todos querem imitar e ninguém quer fazer coisas diferentes. Mas eu não acho que se trate de imitar. Eu acho que Eugénio de Andrade representou muito bem a poesia portuguesa contemporânea sob vários aspectos e, de certa forma, influenciou-me, tal como influenciou outros poetas brasileiros (dos poucos que têm acesso à poesia portuguesa contemporânea). O verso seco de Al Berto também foi importante para mim. A poesia portuguesa contemporânea influencia-me, principalmente na actual fase poética em que me encontro, em que procuro uma linguagem mais requintada e ao mesmo tempo mais simples, mais comunicativa, mais irónica, mais melancólica, talvez.

Por que é que não gostaria de conhecer nenhum dos poetas que admira (ou quase nenhum), como afirmou?
A relação com os poetas é uma coisa algo mística, inexplicável, e eu acho que se quebraria um pouco se os conhecesse como pessoas. Eu vejo-os como vates, como luzes na escuridão, mas na realidade foram homens e mulheres, de carne e osso, com problemas, desilusões, histórias de vida, que em determinado momento criaram aquelas obras. Mas talvez seja difícil conviver com a maioria deles. O artista não é uma pessoa de fácil convívio. É ensimesmado, por vezes megalómano, egoísta, é muito difícil conviver com um artista. Ele está quase sempre muito centrado em si, muito centrado no seu ego e muito pouco aberto ao diálogo e à conversa.

O poeta é um fingidor?
Sem dúvida nenhuma. Essa frase de Pessoa que tantas gerações de poetas tentam, de certa forma, compreender, eu entendo como uma verdade absoluta. O poeta, de certa forma, tem várias máscaras que assume a cada momento. Eu próprio, na minha poesia, procuro referir-me, a cada momento, a situações que nem sempre são verdadeiras, a emoções que nem sempre senti, a tempos e situações que não vivi. A magia da poesia é essa mesma. Transportar-nos para situações que não são necessariamente mentirosas nem fantasiosas, mas estão num meio-termo entre a verdade e a mentira. É nesse local, que não é nem verdade nem mentira, que a poesia se coloca. Um bom poeta tem que ser um fingidor. Um bom poeta tem que ser capaz de se sentir hoje, aqui, como se estivesse na Grécia, no século V, ou talvez no século XXV em qualquer lugar do mundo. O poeta tem que se saber colocar dentro dos vários contextos que existem de forma criativa. Ele é, por natureza, um fingidor. E só é um fingidor quando consegue fazer com que as pessoas que o lêem acreditem que não está a fingir.

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