quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

MIMOS PARA NOSSO INEXISTENTE LEITOR




Meu primeiro livro, LENTUS IN UMBRA:

http://www.portaldepoesia.com/Biblioteca/Lentus_in_umbra.htm

Aquele que poucos entenderam, OS enCANTOS:

http://www.portaldepoesia.com/Biblioteca/Andityas_Soares_de_Moura_OSenCANTOS.htm

Poemas que valem pelos quadros:

http://www.portaldepoesia.com/A_Soares_haikais.htm

Uma entrevista mal-humorada sobre a poesia brasileira, se é que ela existe:

http://www.portaldepoesia.com/Textos_poetas/Andityas_Entrevista.pdf

ARTES E LETRAS - PORTO (Portugal)

“A poesia é a forma superior da linguagem”

Considerado uma das vozes mais marcantes da moderna poesia brasileira, Andityas Soares de Moura é poeta, tradutor, ensaísta, professor universitário e mestre em Filosofia do Direito. Publicou os livros "Ofuscações" (edição do autor, 1997), "Lentus in umbra" (edição do autor, 2001; edição bilingue espanhola lançada por Trea, 2002), "Os encantos" (in vento, 2003) e "Fomeforte" (in vento, 2005). O seu ensaio "A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois Garcia" (Universitária, 2004) foi publicado em Portugal. Quatro anos depois, a edium editores acaba de lançar entre nós o poemário "Dibaxu", do Prémio Cervantes Juan Gelman, numa tradução de Andityas, bem como uma antologia da sua poesia intitulada "Algo indecifravelmente veloz". O "das Artes das Letras" aproveitou a passagem do jovem poeta pelo país para falar sobre a sua arte.

Paula Alexandra Almeida (entrevista)



Há um poema seu em que diz: "Nos jardins de Minas / Só se ensina que a palavra/ só não vira equívoco / quando é pouca / e sussurrada". É esse o segredo para um poeta tão jovem ter uma produção literária como a que você tem?
Não sei. Nem sei se a minha produção é grande. Tenho quatro livros dos quais o primeiro eu não considero como tal, não o considero acabado. Tanto assim que nem entrou na antologia agora editada. Portanto, considero que tenho três livros e de poesia, e também prosa, ensaio e livros na minha área profissional, que é o Direito. Mas eu não sei qual é o segredo da poesia. A poesia é a forma superior da linguagem e, como toda a forma superior, tem que ser económica. Talvez esse verso remeta a isso, a essa economia da linguagem, a essa economia da forma. Porque hoje vivemos num mundo no qual somos bombardeados a cada minuto por inúmeros estilos informacionais, e eu acho que é muito difícil viver nesse mundo. A poesia é uma espécie de válvula de escape, uma espécie de outra realidade em que eu posso movimentar-me melhor, com mais prazer, com mais liberdade, e necessariamente isso tem que ser feito de forma singela, simples, e sem os exageros a que estamos acostumados.

Você organiza antologias, é tradutor, crítico literário, ensaísta, advogado, professor universitário. Como é que tudo isto culmina na poesia?
Essa é uma pergunta que me fazem várias vezes e de várias formas. Para mim, todas essas actividades estão ligadas. No nosso mundo existe uma espécie de doença, de febre da especialização. Eu vejo as coisas de outra forma. Eu acho que nos deveríamos aproximar mais do modelo do Renascimento, quando as pessoas eram, simultaneamente, tutores, músicos, historiadores, filósofos, poetas. E eu acredito que todas as áreas do conhecimento estão ligadas e que essa separação que fazemos actualmente, no mundo contemporâneo, é artificial. Tudo pode ser conectado e deve ser conectado. Na poesia, como é uma linguagem superior, uma beleza superior, tenho que procurar conexões em todas as áreas possíveis e imaginárias do conhecimento humano. De modo que tem tudo a ver eu ser professor de Filosofia do Direito e ser também poeta e tradutor. O Direito é uma ciência social, a tradução é uma forma de poesia, e a poesia permeia todos esses campos. Há inter-relações claras entre todas essas áreas, o que me ajuda bastante. Temos que desconsiderar essa febre da especialização. Eu, pelo menos, acho isso extremamente negativo para a poesia e empobrecedor para as artes e para o conhecimento em geral.

Cristina Mello referiu, num dos lançamentos da sua antologia, que a sua poesia não é fácil, resultando de uma elaboração verbal extremamente densa. Concorda?
Em parte concordo. Eu acho que nenhuma poesia é fácil e se ela diz que a minha poesia não é fácil, eu acho que está certa. Nenhuma poesia é fácil. A verdadeira e boa poesia é um mergulho no que há de mais íntimo na língua e no que há de mais íntimo no ser humano. Todo o trabalho de arte exige, aliás, uma certa dificuldade. Não uma dificuldade de compreensão - a arte tem que se apresentar de uma só vez ao indivíduo, tem que chocar de uma só vez. Mas na construção, vejo a arte e a arte poética como um artesanato. E isso é difícil. É difícil construir uma linguagem, encontrar o verso certo, encontrar a medida correcta, encontrar a transcrição correcta no momento correcto. Isso sim, é difícil. Toda a poesia é difícil e globalmente tensa e o que me interessa na poesia é precisamente a tensão. Se ela não consegue transmitir tensão, positiva ou negativa, não importa, não me interessa. Eu tento transcrever, tento colocar isso nos meus poemas, essa tensão. Talvez daí venha a densidade e a dificuldade. Mas toda a poesia é difícil. A poesia não é uma arte fácil, não é uma arte gratuita.

A sua é uma poesia experimental?
Eu tenho obras experimentais. Tenho particularmente um livro, chamado "Os encantos", do qual alguns poemas estão incluídos nesta antologia, que é uma poesia experimental no sentido de procurar as fontes do nosso imaginário, as fontes do nosso lirismo luso - brasileiro, português, a língua portuguesa como um todo -, nos cancioneiros medievais, que são maravilhosos. Para mim são uma fonte de inspiração e de construção poética. Esse livro é de certa forma experimental porque adopta formas diferentes daquelas que a poesia comum adopta. Nós conhecemos praticamente sonetos, sextinas, odes, mas nesse livro eu procuro outras formas além destas, com um discurso voltado para uma sensibilidade muito diferente da nossa. Talvez uma sensibilidade intemporal mas que eu consegui encontrar no século XII ou XIII. Eu gosto de experimentar em poesia. Gosto de, a cada momento, tentar variar, tentar procurar o limite, a cada momento tentar o novo. Não me agrada ser poeta de um poema só, como a maioria dos poetas, mesmo dos grandes poetas. São poetas de um poema só, escrevendo e reescrevendo várias vezes as mesmas ideias e sensações. Eu não. Eu procuro a cada momento diversificar e nisso o experimentalismo é necessário.

Mencionou os poetas trovadores provençais e alguém escreveu que você os trata com a intimidade de vizinhos pobres. É isso que eles representam para si? Um parente pobre da poesia?
Foi Ivo Barroso, um grande amigo e crítico brasileiro, quem escreveu isso, e fê-lo mais num tom de amigável ironia porque verdadeiramente eu não trato os trovadores como vizinhos pobres; trato como colegas. Não só os trovadores provençais mas também os galaico-portugueses, com os quais tenho até mais intimidade por causa da língua. Eu procuro ter uma certa familiaridade com a tradição. O que eu vejo na maioria dos poetas da minha geração, poetas novos na faixa dos 25 e 30 anos, é uma certa repugnância em relação à tradição poética. Uma vontade de criar o novo, uma vontade de inventar a roda, o que eu acho que é perder tempo. Nós temos uma tradição ocidental de poesia de mais de dois mil anos e se eu quiser fazer alguma coisa bela, verdadeira, tenho que assumir essa tradição. Na minha poesia, eu procuro assumir essa tradição através dos trovadores provençais e dos galaico-portugueses. Por isso dialogo com eles e trato-os como vizinhos. Não como vizinhos pobres, mas como vizinhos extremamente interessantes que estão a todo o momento na minha sala de estar, a beber um bom vinho e ajudando-me a encontrar algum verso interessante.

Por que é que é para si tão importante traduzir outros poetas, nomeadamente de língua espanhola? Acha assim tão necessária a tradução entre o espanhol, e o galego, e o português?
Sim. Eu acho a tradução um momento privilegiado da poesia. A tradição já foi vista como uma simples transcrição de uma linguagem para a outra. Mas para mim é uma forma de poesia.

É uma forma de reescrever um poema?
É uma forma de recolocar um poema que está numa certa tradição noutra tradição. Ao traduzir o [Juan] Gelman, por exemplo, eu retiro esse bloco poético que é o "dibaxu" da tradição argentina, na qual foi escrita, e recoloco na tradição da língua portuguesa. Eu acho a tradução um acto fundamental. E partilho a opinião de Walter Benjamim, que dizia: cada tradução que é feita, a cada momento que é feita uma tradução, aproximamo-nos mais daquele momento pré-babel de uma única língua. Cada tradutor, por mais simples que seja a tradução, ajuda a procurar essa unidade total das línguas e do conhecimento. É uma visão mística. Eu vejo a tradução, sim, como uma forma de poesia. E, como já referi, gosto de experimentar várias formas e não poderia deixar de experimentá-la. O Gelman afirma que é impossível traduzir e eu fiz dessa afirmação o meu mote. Traduzir é impossível. O que se pode fazer é deixar intacta aquela beleza em francês, ou em inglês, ou em castelhano, e, com base nela, criar uma outra beleza em português. Traduzir não é descodificar. Traduzir é criar, é um acto de criação, não é um acto de matemático, reducionista. É um acto de criação e é poesia e por isso é que eu gosto.

Portanto, cada acto de tradução é no fundo a sua visão daquela poesia, a forma como você viu, como você leu, como você viveu aquela poesia?
Exactamente. E por isso é que eu só traduzo poetas de que gosto. Claro que existe a tradução profissional, em que você é pago para isso. Mas para mim a tradução é um acto gratuito, um acto de empatia com outro poeta. Eu gostaria de ter escrito esse livro do Juan Gelman, ou a poesia da Rosalia de Castro que já traduzi, ou poetas franceses do Renascimento que também já traduzi. São poemas que eu escreveria e aos quais eu gostaria que as pessoas que falam e lêem português tivessem acesso. É um acto ao mesmo tempo de entrega e de assimilação. Com a tradução eu assimilo a poética dos outros e faço dela minha também.

Aproveitando uma pergunta sua a Juan Gelman, sobre o facto de falar uma língua que não é totalmente dele e de ser visto pelos seus "verdadeiros donos" como falante de segunda categoria, como é a sua relação com o português?
O Gelman ficou furioso com isso. É um absurdo que depois de 500 anos alguém tenha a noção de que a língua é um património nacional e não um património humano. Depois de 500 anos, o castelhano é muito mais da América Latina do que dos espanhóis. Eu não diria o mesmo do português. Não vejo o português com essa divisão entre português do Brasil e português de Portugal. Eu entendo que a língua é uma herança acima de qualquer conotação política, económica ou sociológica. Não vejo os brasileiros, ou qualquer outro povo que fale o português, como falantes de segunda categoria. Vejo-os como parte de um todo. O português é uma língua com várias conotações. Há várias línguas portuguesas que querem conviver e isso é muito rico para a poesia e para a arte. Eu não entendo isso como uma separação mas sim como uma junção. Não há que se usar a expressão falantes de primeira ou segunda categoria, mas sim bons e maus poetas. E bons e maus poetas existem tanto em Portugal como no Brasil. Mais maus do que bons em ambos. Para mim a língua portuguesa serve para unir e não para separar. Infelizmente não é o que pensa a maioria das editoras, por exemplo. Visitei várias livrarias no Porto e não há praticamente livros brasileiros, a não ser um ou dois dos mais famosos - Drummond, Manuel Bandeira… contemporâneos não existem. Da mesma forma, no Brasil só se encontram os clássicos e um ou outro poeta mais conhecido como Eugénio ou Sophia, que já ultrapassaram as fronteiras de Portugal. Não há diálogo entre a poesia contemporânea portuguesa e a poesia contemporânea brasileira. E eu acho isso uma pena.
Mas nesse caso específico considera o português uma barreira?
Não. A barreira que há é mental. Não é espiritual, não é cultural. A língua é a mesma e os espíritos do brasileiro e do português são muito semelhantes. A barreira é económica e política. É uma falta de vontade dos dois governos de concretizar esse intercâmbio. Em Buenos Aires encontram-se livros de Espanha tranquilamente. No Brasil para conseguir um livro português tem que ser importado, a um preço bastante elevado, o que gera uma falta de diálogo. Se pedir a um bom poeta brasileiro para citar cinco poetas portugueses contemporâneos, ele vai demorar e talvez não consiga citar os cinco. Isso é um absurdo.

Qual é a sua relação com a poesia portuguesa?
É uma relação absolutamente apaixonada. Eu adoro a poesia portuguesa, toda a poesia, desde os trovadores até os dias de hoje. Acho-a uma poesia incisiva, muitas vezes irónica, uma poesia inteligente, uma poesia que não se perdeu, ao contrário da poesia brasileira, que tem vindo a perder-se. A partir de um certo momento, a poesia brasileira sofreu um certo esvaziamento, em parte devido ao experimentalismo puro de que passou a sofrer. E até hoje não reencontrou o caminho. Isso não se vê na poesia portuguesa. Apesar de existir o experimentalismo, a poesia portuguesa tem uma linha de desenvolvimento muito clara e muito nítida. E apesar de os poetas serem vários, cada um com a sua história pessoal e as suas preocupações específicas, a poesia portuguesa não sofreu nenhum corte, como aconteceu, e acontece ainda hoje, com a poesia brasileira. A poesia portuguesa tem um caminho e ainda é lida pelo homem comum. No Brasil só os poetas lêem os poetas. Em Portugal não. Os não-poetas lêem os seus poetas e isso é fundamental. A poesia não pode estar guardada dentro do armário, tem que circular, ser polémica, gerar discussões. Mas, de volta à pergunta inicial, a minha relação com a poesia portuguesa é apaixonada. E do que eu mais gosto é dessa leve ironia, desse lirismo muito saudoso, muito melancólico. Como Portugal, mesmo.

Quais os poetas portugueses que mais admira? Algum o inspirou?
É difícil. Para começar, obviamente, os trovadores galaico-portugueses. Esses talvez sejam os que mais me influenciaram. Os óbvios, Camões, Pessoa, Sá Carneiro, são verdadeiros papas da poesia. Contemporaneamente, gosto muito de Eugénio. É um poeta requintado, um poeta absolutamente consciente do seu verbo, da força da sua expressão, um poeta que conseguiu traduzir bem o espírito português e algo mais, um espírito universal, nos seus versos. Al Berto também me fala bem de perto, O'Neill, Sophia…

E algum desses o inspirou particularmente?
Eugénio de Andrade sim, com certeza. Ele mesmo dizia que hoje em dia todo o poeta quer imitar Eugénio de Andrade. Hoje em dia todos querem imitar e ninguém quer fazer coisas diferentes. Mas eu não acho que se trate de imitar. Eu acho que Eugénio de Andrade representou muito bem a poesia portuguesa contemporânea sob vários aspectos e, de certa forma, influenciou-me, tal como influenciou outros poetas brasileiros (dos poucos que têm acesso à poesia portuguesa contemporânea). O verso seco de Al Berto também foi importante para mim. A poesia portuguesa contemporânea influencia-me, principalmente na actual fase poética em que me encontro, em que procuro uma linguagem mais requintada e ao mesmo tempo mais simples, mais comunicativa, mais irónica, mais melancólica, talvez.

Por que é que não gostaria de conhecer nenhum dos poetas que admira (ou quase nenhum), como afirmou?
A relação com os poetas é uma coisa algo mística, inexplicável, e eu acho que se quebraria um pouco se os conhecesse como pessoas. Eu vejo-os como vates, como luzes na escuridão, mas na realidade foram homens e mulheres, de carne e osso, com problemas, desilusões, histórias de vida, que em determinado momento criaram aquelas obras. Mas talvez seja difícil conviver com a maioria deles. O artista não é uma pessoa de fácil convívio. É ensimesmado, por vezes megalómano, egoísta, é muito difícil conviver com um artista. Ele está quase sempre muito centrado em si, muito centrado no seu ego e muito pouco aberto ao diálogo e à conversa.

O poeta é um fingidor?
Sem dúvida nenhuma. Essa frase de Pessoa que tantas gerações de poetas tentam, de certa forma, compreender, eu entendo como uma verdade absoluta. O poeta, de certa forma, tem várias máscaras que assume a cada momento. Eu próprio, na minha poesia, procuro referir-me, a cada momento, a situações que nem sempre são verdadeiras, a emoções que nem sempre senti, a tempos e situações que não vivi. A magia da poesia é essa mesma. Transportar-nos para situações que não são necessariamente mentirosas nem fantasiosas, mas estão num meio-termo entre a verdade e a mentira. É nesse local, que não é nem verdade nem mentira, que a poesia se coloca. Um bom poeta tem que ser um fingidor. Um bom poeta tem que ser capaz de se sentir hoje, aqui, como se estivesse na Grécia, no século V, ou talvez no século XXV em qualquer lugar do mundo. O poeta tem que se saber colocar dentro dos vários contextos que existem de forma criativa. Ele é, por natureza, um fingidor. E só é um fingidor quando consegue fazer com que as pessoas que o lêem acreditem que não está a fingir.

Marrakesh, Marrocos, janeiro, ANNO DOMINI 2010






NÃO HÁ RESPOSTAS. SÓ ESCOLHAS.

Resenha de WALDEN OU A VIDA NOS BOSQUES, de Henry David Thoreau



UM HOMEM EM ESTADO DE ALERTA

Andityas Soares de Moura Costa Matos

“O mundo eu não o amei, nem ele a mim;
não bajulei seu ar vicioso, nem dobrei
aos seus idólatras o joelho do sim”.
Byron, Childe Harold, III, 113 .
(BYRON, George Gordon; KEATS, John. Byron e Keats: entreversos. Trad. Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2009, p. 21).

No final de 2008 um filme passou desapercebido pelas massas, tendo recebido o frio desdém de Hollywood, o que já nos faz pensar que se trata, no mínimo, de uma obra honesta. Baseado em fatos reais recolhidos por Jon Krakauer, o diretor Sean Penn nos conta em Into the wild a história de Christopher McCandless, jovem norte-americano promissor que resolve largar tudo, abandonar a família, os estudos e o futuro profissional assegurado para se embrenhar em uma aventura de autoconhecimento cuja meta concreta era o Alasca, a natureza selvagem. Em sua jornada Christopher conhece várias pessoas que o auxiliam, mas seus principais companheiros são sempre os livros. É neles que o quase-estudante de Direito encontra inspiração e coragem para se tornar um outsider e renegar a falsa vida que nos é imposta. Na bagagem de Christopher conseguimos identificar alguns nomes, alguns títulos: Doutor Jivago, Tolstói e o bom e velho Thoreau. Em inúmeras passagens do filme o personagem principal cita trechos de Walden e chega a confundir a sua personalidade com a de Thoreau, apresentando-nos uma versão contemporânea e extremada deste grande pensador, que acaba de ganhar em Portugal uma nova edição de sua obra maior, já que não a mais conhecida, que é certamente o breve e cintilante ensaio A desobediência civil.
Famosa por desenvolver um dos projetos editoriais mais consequentes e criativos entre os poucos que existem no mundo leitor lusófono, a Antígona Editores Refractários comemora seus trinta anos na contramão do mercado lançando a segunda edição de Walden ou a vida nos bosques de Henry David Thoreau (1817-1862), um dos mais importantes nomes do movimento Transcendentalista norte-americano, discípulo de Emerson, filósofo, educador, naturalista, ativista político e escritor. Trata-se de uma belíssima edição que conta com a tradução exata e elegante da brasileira Astrid Cabral. Ainda que não seja muito fácil encontrar o livro no Brasil, vale a pena tentar obtê-lo em sites de compra como o da Livraria Cultura de São Paulo. Editado pela primeira vez em 1854 nos Estados Unidos da América, Walden se tornou um clássico entre os malditos, tendo inspirado a geração hippie, os escritores beatniks e todos os rebeldes com causa de uma ponta a outra do globo. A proposta de Thoreau é de uma singeleza a toda prova. Tendo se mudado para o bosque que circunda o lago Walden, ele construiu com as próprias mãos uma cabana e viveu em semi-isolamento de 1845 a 1847, até decidir voluntariamente retornar à civilização. Com exceção de algumas visitas pontuais, de caminhadas necessárias à cidade para comprar ferramentas e da prisão que teve de amargar em 1846 por se recusar a pagar impostos federais que seriam utilizados na guerra contra o México – será esta experiência o embrião de A desobediência civil –, Thoreau permaneceu cerca de dois anos em contato profundo com a natureza, reequilibrando os ritmos vitais do corpo e da mente e preparando a escrita de Walden. O autor explica suas razões em um trecho que se tornou justamente célebre ao ser citado em outro belo filme, Sociedade dos poetas mortos: “Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido. Não desejava viver o que não era vida, sendo a vida tão maravilhosa, nem desejava praticar a resignação, a menos que fosse de todo necessária. Queria viver em profundidade e sugar toda a medula da vida, viver tão vigorosa e espartanamente a ponto de pôr em debandada tudo o que não fosse vida, deixando o espaço limpo e raso” (p. 108).
Walden ou a vida nos bosques não tem propriamente um enredo, sendo antes o resultado das observações pessoais e das meditações de Thoreau. Enfrentar as suas quase 400 páginas às vezes constitui uma tarefa árdua, pois há capítulos inteiros em que Thoreau se dedica a explicar a dinâmica de congelamento do rio Walden, a descrever os inúmeros pássaros que o visitam pela manhã e a nos apresentar a sua contabilidade pessoal, impecável como a de todo bom puritano, título que Thoreau lutava para não merecer. Mas as passagens algo tediosas são largamente compensadas pelas intensas digressões filosóficas e artísticas de Thoreau, pelo seu pensamento comprometido com a causa da verdade e da liberdade, pelo seu estilo fulgurante, crítico ao extremo, iconoclasta e ainda assim delicioso, recordando-nos a verve mordaz de um seu conterrâneo do início do século XX, o jornalista Henry Louis Mencken, famoso pelas diabruras verbais. A linguagem, para Thoreau, é uma forma de comunicar a verdade, desde que não esteja infectada pelos vícios do politicamente correto, como ocorre nos nossos dias: “Desejo falar sem papas na língua seja onde for; como um homem em estado de alerta a outros homens em estado de alerta” (p. 352).
Mas por que um livro escrito há mais de 150 anos nos interessaria hoje? A resposta é óbvia quando observarmos nossas vidas vazias que se guiam exclusivamente tendo em vista imperativos econômicos e materiais, quando percebemos que algo nos falta, que a verdade está lá fora e não a conseguimos enxergar. Walden se coloca então como um ponto de fuga capaz de expor as nossas fraquezas e nos obrigar a ver a realidade tal como ela é: infinita, maravilhosa e vedada a todos aqueles que pervertem a sua própria essência. A estes só resta o sereno desespero: “Os homens, em sua maioria, levam vidas de sereno desespero. Aquilo a que se chama resignação é desespero crónico” (p. 22). Thoreau não contemporiza, não aceita subornos e não poupa ninguém, nem mestres e nem deuses. Seu ataque à civilização – personificada em correios, jornais, mobílias e despertadores – é demolidor e inclui a denúncia minuciosa do luxo, da pressa e até mesmo da caridade, essa espécie de falso bálsamo que faz os opressores dormirem melhor e não muda em nada as estruturas de poder. Em um mundo no qual reinasse a justiça não precisaríamos de caridade. A cobiça desenfreada, a política da qualidade total e do cliente-tem-sempre-razão, a gestão eficiente de coisas mundanas e inúteis nos fizeram esquecer que há algo além de lucro e prejuízo: “Por que deveríamos nós correr desesperadamente atrás do sucesso, em empreendimentos desesperados? Se um homem não acerta o passo com os seus companheiros é porque talvez ouça um tambor diferente. Deixai-o marchar conforme a música que ouvir, ainda que lenta e distante” (p. 353).
Segundo Thoreau, o papel da arte é o de despertar-nos para a verdade. Mas se hoje estamos limitados e emburrecidos pelas telenovelas, pelos reality shows e pelo futebol, como resistir ao futuro que se mostra inegavelmente opressor? Apaixonado pelo Oriente e pela Grécia, terras onde nasceu a verdade – terras onde ainda está a verdade –, Thoreau nos alerta para o processo de estupidificação a que somos submetidos diariamente pelos meios de comunicação dominados pelo Estado e pelo poder econômico. A pretexto de oferecer entretenimento, eles minam nossas energias, sabotam qualquer senso crítico e impõem um gordo e macilento comodismo: “As melhores obras de arte do homem exprimem a luta para libertar-se desta condição, mas o que resulta da nossa arte consiste apenas em tornar confortável este estado inferior e fazer-nos esquecer do outro mais elevado” (p. 53). Com isso falseiam-se as percepções e acabamos por entender que a caverna é a única realidade. Omitimo-nos diante das injustiças e dos desvarios do Poder, assim como os contemporâneos de Thoreau, que concordavam com a escravidão ao considerá-la uma instituição social perfeitamente normal. Hoje são outras as servidões, mais alarmantes porque mais sutis e permanentes. Trata-se agora da servidão do espírito.
Thoreau retoma Platão e antecipa Chomsky ao notar que: “Ao mesmo tempo que a realidade é uma fábula, simulações e enganos são considerados como as verdades mais sólidas” (p. 113). Isso porque somos acostumados desde a mais tenra infância a não questionar, a sermos educados, sorridentes e servis, a temermos Pai, Deus e Polícia. Profundamente desmobilizador, o Cristianismo nos ensina que há mistérios e homens-deuses que se deixaram torturar para ganhar o céu em benefício de nossa raça que, absurdo, já nasceu marcada pelo pecado original. Em um ambiente assim a verdade se reserva aos Papas e Carolas, aos Presidentes e Ministros dos Supremos Tribunais, ao Professor Doutor ou ao Líder Sindical, todos com maiúsculas reluzentes e santas, levando-nos a considerar “[...] a verdade como algo remoto, nas imediações do sistema solar, atrás da mais longínqua estrela, anterior a Adão e posterior ao derradeiro homem” (p. 114). Por isso a obra de Thoreau é urgente, por isso é perigosa como tudo que é urgente. Tal e qual seus célebres sucessores – Gandhi, Luther King, Marcuse, Chomsky etc. –, Thoreau se envolve até a medula em um processo radical de desencobrimento do Real mediante o qual somos habilitados a torcer e a retorcer as opiniões dadas e herdadas, como quando afirma que: “Só os derrotados e os desertores vão para as guerras, covardes que fogem e se alistam” (p. 350). As sentenças de Thoreau em Walden – sempre inapeláveis, sempre certeiras – podem até nos parecer ácidas, sendo mesmo insuportáveis para muitos, acostumados que estão a serem números e não homens, mas nelas não se esconde nenhum pessimismo como querem alguns e muito menos idealismos, anarquismos e utopismos. Para além dos rótulos comportados que compõem os índices dos manuais de Filosofia, Thoreau se compromete com um único valor, a exemplo de Christopher McCandless: “Mais que amor, dinheiro e fama, dai-me a verdade” (p. 358). Ainda que Walden contivesse infinitas tolices – e não é este o caso –, tal súplica bastaria para justificar o livro inteiro.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da palavra à poesia

Caros amigos,

O artigo de Henrique Marques-Samyn com o título DA PALAVRA À POESIA: UMA (PROVISÓRIA) LEITURA DA OBRA DE ANDITYAS SOARES DE MOURA foi publicado no novo número da revista eletrônica Triplo V. É um texto muito legal em que o articulista consegue captar bem algumas linhas de força de meus textos, em especial os mais novos. Claro, será uma honra para mim e para o Henrique contar com as leitura de vocês.

Eis o enlace para o texto:

http://revista.triplov.com/numero_04/Marques-Samyn/index.htm

Abraços.

Andityas Soares de Moura.