Agamben, corona vírus, estado de exceção e vidas nuas
Há algumas semanas o filósofo italiano Giorgio Agamben tem escrito breves observações críticas sobre a pandemia do chamado “corona vírus”. O que espanta não é o tom duro de suas palavras – de resto, algo necessário em alguém que, como Agamben, assume o improvável gesto de um parresiasta no tempo de mentira universal que nos coube viver – mas as reações absolutamente míopes, equivocadas e mesmo ferozes com que são recebidas, seja entre a imprensa, seja entre intelectuais. A nós, ao contrário, nos parece que as reflexões de Agamben representam uma das únicas apreciações lúcidas do momento em que (sobre)vivemos, quando as pessoas suplicam para serem tuteladas, postas sob contínua vigilância, encerradas em suas casas e, ao final, contabilizadas como meros viventes ou morrentes. Se a parrhesía é aquela arte grega de dizer a verdade, principalmente diante do risco de um alto custo pessoal, nada ilustra melhor esse modo de vida perdido do que as palavras abaixo, próprias de um verdadeiro filósofo e não de um qualquer assustado lambe-botas do poder de turno.
ASMCM
Esclarecimentos
Um jornalista italiano se empenhou, segundo o um bom costume da sua profissão, a distorcer e a falsificar minhas considerações sobre a confusão ética na qual a epidemia está colocando o país, na qual não se tem mais respeito nem mesmo pelos mortos. Assim como ele próprio não faz questão de citar o seu nome, também não vale a pena retificar uma a uma as não poucas manipulações que faz. Quem quiser pode ler o meu texto Contágio no site da editora Quodlibet. Em vez disso, publico aqui outras reflexões que, não obstante sua clareza, provavelmente serão também objeto de falsificação.
O medo é um mau conselheiro, mas faz aparecer muitas coisas que até então se fingia não ver. A primeira coisa que a onda de pânico que paralisou o país nos mostra, com clareza, é que a nossa sociedade não acredita em mais nada além da vida nua. É evidente que os italianos estão dispostos a sacrificarem praticamente tudo, as condições normais de vida, as relações sociais, o trabalho, até mesmo as amizades, os afetos e as convenções religiosas e políticas diante do perigo de adoecerem. A vida nua – e o medo de perdê-la – não é algo que une os seres humanos, mas os cega e os separa. Os outros seres humanos, como na pestilência descrita por Manzoni, são vistos agora apenas como possíveis propagadores da doença (untori), que precisamos a todo custo evitar, e dos quais é preciso manter-se à distância de pelo menos um metro. Os mortos – os nossos mortos – não têm direito a um funeral e não é claro o que está sendo feito com os cadáveres das pessoas que nos são caras. O nosso próximo foi cancelado, e é curioso que as igrejas se calem sobre isso. O que se tornam as relações humanas em um país que se acostuma a viver desse modo não se sabe por quanto tempo? E o que é uma sociedade que não tem outro valor que não a sobrevivência?
A outra coisa (não menos inquietante do que a primeira) que a epidemia faz aparecer com clareza é que o estado de exceção, ao qual os governos têm nos habituado há tempos, realmente se tornou a condição normal. Existiram no passado epidemias mais graves, mas ninguém nunca havia pensado antes em declarar um estado de emergência como o atual, que nos impede até mesmo de nos movermos. Os seres humanos foram tão acostumados a viver em condições de crise perene e de perene emergência que não parecem se dar conta de que sua vida foi reduzida a uma condição puramente biológica, e perdeu toda dimensão não apenas social e política, mas também humana e afetiva. Uma sociedade que vive em um estado de emergência permanente não pode ser uma sociedade livre. Nós de fato vivemos em uma sociedade que sacrificou a liberdade às assim chamadas “razões de segurança” e se condenou por isso a viver em um perene estado de medo e de insegurança.
Não espanta, assim, que contra o vírus se fale de guerra. As medidas de emergência nos obrigam, de fato, a viver em condições de defesa diante de um fogo cruzado. Mas uma guerra contra um inimigo invisível, que pode se aninhar em qualquer outro ser humano, é a mais absurda das guerras. É, na verdade, uma guerra civil. O inimigo não está fora, mas sim dentro de nós.
O que preocupa não é tanto, ou não apenas, o presente, mas o que virá depois. Do mesmo modo como as guerras deixaram de herança à paz uma série de tecnologias nefastas, desde o arame farpado até as centrais nucleares, é muito provável que se tentará prosseguir, mesmo depois da emergência sanitária, com os experimentos que os governos não tinham conseguido colocar em prática até então: que as universidades e as escolas sejam fechadas e que as aulas passem a ser só on-line, que as pessoas parem finalmente de se reunir e de conversar por razões políticas ou culturais e passem a trocar apenas mensagens digitais, que em toda parte seja possível que as máquinas substituam todo contato – todo contágio – entre os seres humanos.
Giorgio Agamben
17 de março de 2020.
(Trad. Ana Suelen Tossige Gomes e Andityas Soares de Moura Costa Matos)